abrira de novo a caixa de correspondências. e
nada. fora a terceira vez desde que o dia raiara, mas era essa a sua mania:
esperar cartas. cartas que não viriam, já faz um tempo que não se trocam mais,
só e-mails, mas, preferencialmente, umas mensagens rápidas por computador.
foi-se a era do papel - infelizmente, ela pensava, perderam o gosto pela
poesia. foi-se o tempo do toque ausente, da tinta no papel, da caligrafia,
foi-se o tempo das folhas sem linhas e os erros de alinhamento. sobe a
montanha, desce a montanha. e a imprecisão do traço revelando os sentimentos
todos. tem gente que chora e borra a tinta - deixa ficar. deixa marcado o que é
se passava por dentro quando por fora eram só palavras.
mas já não é época de cartas. já não é época
de caneta, de lápis, de papel. mesmo assim vitória aprendera a esperar, como
forma de aliviar o coração cheio de afazeres. vitória tinha os cabelos
apertados numa trança e o coração, num emaranhado de sentimentos. não aprendera
na escola a arte de ser leve, mas havia descoberto com o tempo e com o mundo
pequenos subterfúgios ao peso de algumas dores e culpas. porque, no fundo,
todos temos barreiras e barrancos dos quais sofremos um medo crônico. e se não
for da expectativa do que existe do outro lado, do alcance inalcançável, não
faz sentido nem tentar pular, nem tentar escalar. se não fosse o desejo de
chegar, ficaríamos para sempre presos e estáticos no mesmo lugar de sempre,
apenas observando outros corajosos chegando aos paraísos. é da coragem em
vencer a fragilidade que nos tornamos gradativamente fortes.
vitória tinha essa estranha mania,
irremediável mania, de ter fé na vida. gostava da primavera, pelo cheiro de
vida que dá quando as flores abrem. pela cor que o sol irradia em tudo, em
todos. e quando venta, há um perfume gostoso e sutil de aurora. acreditava que
o amor não seria um desses grandes enigmas que o mundo prega. o amor é fácil, é
semeado na brisa. o amor é aquilo que as pessoas não se sentem fortes o
suficiente para sentir, sem saber que é uma condição constante e indissociável
- não uma opção: ama-se sempre e de maneiras variadas. ela sabia disso e, de
alguma forma muito complexa para ser explicada em poucas linhas, amava
encontrar a caixa de correspondências vazia. amava chegar até lá com uma
expectativa e voltar sem nada nas mãos. já se acostumara em prolongar a
esperança e se alimentar dela todas as vezes em que sua fé na vida parecia
falhar. era o combustível, era o motor e, sem querer, tornava-se cada vez mais
tudo que tinha. vivia para abrir a caixa e depois fecha-la, como um operário
que aperta um parafuso. um ato mecânico, como escovar os dentes. uma tarefa de
sobrevivência, como tomar água.
e seria sempre assim, se não fosse essa manhã.
ainda era outono, as folhas forravam o chão em seu tapete estranho e quebradiço
cheio de cores. abrira a caixa e nada. devolveu a tampa que, com o impulso, fez
um tilintar que misturou-se com uma voz inesperada. um bom dia que não fazia
parte do ritual de chegar, ter certeza da ausência e voltar para a casa. eis
que chegara alguém. não uma carta, nem um beijo. não viera um pássaro em sua
janela para cantar uma serenata. era a voz de um homem. era grave e nem por
isso doída. era uma voz sem corpo martelando dentro de seu ouvido. abaixou-se
para pegar uma folha caída no chão. bom dia, moça. ouviu de novo. sabia que
viria de alguém, mas teve receio de virar-se. não era medo. era só receio, esse
sentimento que nos dá quando fazemos coisa errada e pressentimos que vai dar
errado e algo manda nosso corpo correr para bem longe. mas nós continuamos,
vamos até o fim, até dar errado. até ter certeza que deveríamos ter corrido.
vitória parou, amassou a folha com os dedos. o
som de algo quebrando como uma onda na orla de uma praia deserta. fez um eco. e
olhou. sabia que não deveria olhar, mas olhou. oi, moça, tem carta para você.
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Divulgação/Facebook |
Stefano Manzolli, dezenove anos, adventista do sétimo dia, escritor de blog, desenhista de moleskine, estudante de letras. um grande aprendiz da vida que não domina muito bem a arte, mas que tenta melhorar com o tempo. aprendeu a ser grato a Deus e não sabe mais viver sem redes sociais: tem tumblr, web-book, twitter e facebook . gosta de conhecer e experimentar o mundo através dos outros e das coisas que escreve.
ela acontece as quintas-feiras!**