Páginas

quinta-feira, 21 de junho de 2012

maçãs


tereza, naquela manhã, pouco antes de se colocar ao pé da janela para esperar, mas logo em seguida a terminar de escovar seus dentes depois do almoço, retirou uma foto da gaveta. poderia ser preto e branco, talvez bem tirada, num estúdio, como essas todas que avós costumam guardar para lembrar dos parentes que já morreram faz um tempo. mas aquela foto não era boa, de jeito nenhum. era uma foto feia: tirada na praia, contra a luz, um pouco tremida. o homem, de sunga azul claro e chapéu de palha, fazia graça pra câmera. algo como uma careta com o corpo todo retorcido. os óculos de sol parecem tombar do rosto magro e, por causa do movimento, há uma nuvem de areia circundando tudo isso. é uma foto estranha, porque quem tirou provavelmente ria e, assim, deixou cortar um pedaço da cabeça e desenquadrar o corpo do meio do papel. mas, no fundo, por causa de tudo isso é uma foto linda. não é de estúdio, não é pensada: é uma foto. é um fragmento de vida, é um desses sorrisos sinceros que, de tão largos, deixam o rosto meio deformado: o nariz desce meio adunco, as orelhas correm pra trás, as bochechas se enrrugam, os olhos meio fechados. e essa estranha combinação é a beleza do sorriso. é a beleza que existe em quem é alegre. tereza passa um dos dedos enrugados sobre a feição, como se pudesse tocá-lo, parece que está triste e feliz ao mesmo tempo. diz um amém baixo, quase sem força. e então põe-se na janela. a brisa em seus ombros. olha pra baixo, percorre todas as pessoas que estão na rua com seus olhos atentos e tem sua atenção chamada por uma menina de vermelho. por um carteiro que lhe entrega uma carta. ah, como queria que fosse ela! tem vontade de tomar chá para acalmar a alma. chá de maçã.

uma carta para mim? sim, você não estava esperando? vitória pensou em mentir, dizer que não, nunca espero cartas. não, nunca abro a caixa de correio. oh, como estou surpresa. espero, moço, foi o que disse por fim, espero sempre e nem sei o porquê. espero uma carta que não sei da onde vem e nem por que vem. espero todos os dias que uma vinda, na verdade, um regresso, um hiato na estrada de alguém que seja aqui: na minha caixa de correios. espero que alguém se importe e me mande dizer, via papel e tinta, que sente minha falta. eu espero. e talvez a partir de hoje eu não precise mais. o carteiro deu uma risada - era dessas pessoas que sabem apreciar a poesia da vida quando ela surge assim, do nada, no meio de uma entrega pelos lábios vermelhos de uma menina vermelha numa manhã de sol. quem é que mandou? pergunta um pouco para si mesma, um pouco para o rapaz. bernardo mandou - respondeu quase ao mesmo tempo, ele com a certeza de que ela o conheceria, ela com a dúvida de que o nome nunca lhe passou nos lábios. agradece a carta, ele cumprimenta-a uma última vez abaixando o rosto, revelando o topo azul do chapéu amarelo. vitória senta-se à mesa, o envelope colorido em mãos - as quais formigam levemente. é nervosismo, ela sabe. ela não quer abrir, ela não pode abrir. porque não é para ela. com certeza não. mas também não tem coragem de virar o envelope e ver o nome do remetente. tateia vagarosamente e percebe que a carta é grossa, pelo visto é longa: de alguém que tem muito para falar. aos poucos, como se fosse um ritual sagrado, rasga a lateral do papel, tomando cuidado para não rasgar a carta, nem sequer uma beirada. faz isso com precisão cirúrgica e coração de apaixonado - que treme quando se vê diante do fragmento de quem ama. sonha que, talvez, bernardo lhe ame. assim às escondidas. mas ela não sabe quem ele é. com certeza, não. e a quebra da sua expectativa, então, é saber de quem bernardo fala e como é que fala. e porque fala. espera que seja uma carta de amor. espera amar um amor que não é dela, mas lhe chegou nas mãos.

marcos fica observando-a do momento em que pega a carta nas mãos. em que fala uma porção de coisas bem alto para o carteiro - que não entende, mas balança a cabeça compreensivo. vê quando gesticula tanto com as mãos que parece, na verdade, estar dançando com um parceiro imaginário. é bonita. de todo, assim de longe. como uma formiga vermelha. parece uma maçã, ele pensa e, por causa disso mesmo, tem vontade de mordê-la para sentir o sabor. e ter o suco escorrendo pelos lábios. para saber a cor que esconde por dentro, debaixo do casaco - ou seria sua pele? - vermelho. observa-a hipnotizado, seus passos, como tateia vagarosamente a carta, com o maior respeito. quem é que lhe mandou? não sabe. não há como se saber se não descer as escadas do prédio, bater em sua porta e perguntar. mas tem vergonha de fazer isso, tem vergonha do amor. tem vergonha de sentir amor, de querer amor, assim facinho. dado de graça por causa de uma carta, um casaco vermelho, um quadro inacabado e meia dúzia de rascunhos jogados pela janela como se fosse uma chuva de papel picado. tem medo de sorrir, mesmo que agora sinta uma vontade imensa. sim, precisa de um sorriso, precisa gritar espere, menina! mas não grita. não se move, fica e nesse ato de ficar, decide pintá-la. acha melhor pintá-la de costas, sem olhos, sem mãos. sem esses signos todos que lhe perturbam em quadro de gente. não quer ter a aflição do piscar ausente e nem os lábios que não gritam e não falam e não se mexem. quer deixar assim de costas e morrer de uma tentação maluca de cutucar-lhe o ombro e esperar que vire. também não vira e, por causa disso mesmo, maçãzeia-se cada vez mais. um fruto maduro esperando a mordida do descobrimento. mistura dois tons de vermelho diferentes e começa com pinceladas fartas.

vitória abre a carta. evita as primeiras linhas, vai direto para a terceira página. bernardo diz que não aguenta mais a saudade das maçãs. das tortas de maçã, do chá de maçã, do cheiro da maçã - porque a pele dela, que ele tem tanta vontade de beijar de novo, tem cheiro de maçã. um cheiro gostoso de manhã nova, sempre e sempre. dela quem? vitória não quer saber. prefere não saber, porque é uma carta de amor que poderia ser pra ela. discretamente cheira-se, mas tem perfume de mel, por causa do creme. não é poético o seu cheiro. não é poética a sua vida e espera que um dia, quem sabe, uma carta venha lhe tirar da monotonia. e essa carta chegou - mesmo que não lhe seja endereçada.

tem chá de maçã no bule, tem cor de maçã no pincel, tem cheiro de maçã na vida, e três janelas abertas se olhando, se desejando. às vezes é preciso fender o fruto para viver um amor eterno, mesmo que não seja o seu. da distância da espera por algo que não virá ao seu encontro é preciso gerar uma força de correr em busca do que se esconde. era um bairro esse no meio de uma vila comum. Cheio de histórias incríveis.

________________________________________________________________
Divulgação/Facebook

Stefano Manzolli, dezenove anos, adventista do sétimo dia, escritor de blog, desenhista de moleskine, estudante de letras. um grande aprendiz da vida que não domina muito bem a arte, mas que tenta melhorar com o tempo. aprendeu a ser grato a Deus e não sabe mais viver sem redes sociais: tem tumblr
web-booktwitter e facebook . gosta de conhecer e experimentar o mundo através dos outros e das coisas que escreve.










Esta são maçãs, relembre Marcos ,Tereza e Vitória

**Manzolli é o convidado e amigo de Dani para a web-serie CONTO 4 CONTO.
ela acontece as quintas-feiras!**

Um comentário:

Postar um comentário

e pra você, o que faz sentido?

UA-37135746-1